E lá estava Flor, trinta e oito anos, despindo-se de um avental de cozinha e de um vestido acinturado. Sobre ela reflete uma luz azul que vai suavemente transformando-se em um tom avermelhado. Agora ela veste as roupas do marido, que acabara de sair, desejando boa noite. Senta-se em sua poltrona e ouve-se o som de uma chamada.
Um homem magro e alto, vestindo um blazer fino, se treme de frio. Seus olhos estão vidrados nela. Ela se vira para a platéia e seus olhos o encontram. A partir daí, aquela ligação de olhares não se desfaz mais.
Flor agora já atua fazia muitos anos, desde sua entrada na escola de teatro Cal, em Laranjeiras. No seu aniversário de dezenove anos, ela e Alberto, em seu point habitual no café bemamado, tiveram uma importante conversa. Era chegada a hora de enfrentar sua realidade. Ela era filha de Cecília, uma mulher de classe alta que vivia às custas de uma família de militares e de Alberto, um jornalista de classe média que tinha poucos gastos e nunca se importou em ajudar suas filhas sempre que possível. Era ele que mantinha a vida de Flor, sem grandes luxos. Mas os dois viviam bem. Flor estava cansada de viver à deriva. Não havia mais como enrolar o fato que ela precisava escolher um modo de vida que fosse seu. Previamente à data do aniversário, ela já tinha pensado muito a respeito. A conclusão que chegou foi que suas paixões eram as pessoas e as histórias.
— Pai, queria te contar que arranjei um emprego em uma livraria…não falei nada antes porque não sabia se de fato conseguiria o trabalho. O salário é baixo, eu sei. Eu estava aqui pensando…
— Flor, você sabe que no que você precisar eu e sua mãe podemos lhe ajudar.
— Eu sei, eu sei. Mas quero ter um dinheiro que seja meu. Com ele eu vou pagar o curso de teatro que quero fazer.
— Que maravilha, minha filha! Quero apenas te ver feliz. Acho que você leva jeito para a coisa. Você sempre viveu criando histórias na sua cabeça…
— E também é hora de eu ir morar sozinha, preciso do meu espaço…você entende? Não é que eu não goste de morar na nossa casa, é só que…
Flor percebeu que seu pai olhava pensativo pela janela, enquanto lá fora chovia.
— Eu te compreendo filha, você pode contar comigo. Vamos procurar um lugar para você morar…acho que quanto a isso deveríamos falar com sua mãe…
— Nada disso seu Alberto. Não quero minha mãe no meio disso!
Para mim, basta uma kitnet, gosto de espaços pequenos e não tenho muita coisa…
E ela assim se decidiu. Trabalhando e estudando, com o suporte financeiro de seu pai nos poucos gastos da casa. Dentro da Cal, ela foi introduzida como uma atriz, sentia que seria seu ofício, ela foi expandindo seus horizontes. No palco, brincando de ser o outro, experimentando novas vidas, sentia que multiplicava-se e a convivência com os colegas de curso e depois com seus parceiros de espetáculos foi criando ao redor de si, breves, porém intensas relações.
Foi neste percurso que Flor apareceu em críticas de teatro que exaltavam a sua entrega. Sua mais elogiada performance foi na peça que chamava-se “O que jaz por detrás”.
Contava a história de uma dona de casa que, quando o seu marido saia para o trabalho noturno, trocava suas roupas por roupas masculinas e atendia mulheres que buscavam, através de chamadas telefônicas, se entreter sexualmente.
Era setembro e o tempo já estava esquentando, porém dentro do teatro Poeira, em Botafogo, o ar condicionado fazia com que a plateia sentisse bastante frio. A peça estava em cartaz já em sua terceira semana lotando a pequena sala. Muito se falava sobre sua protagonista.
Na terceira fileira, naquela noite, estava Caio. Um homem com cerca de dez anos a mais do que Flor. Era extremamente magro e um pouco mais alto. De braços cruzados ele tremia. Seria apenas pelo frio, ou pela fascinação? Desde o momento em que Flor, encarnada em sua personagem, cruzara o olhar com ele, decidiu que era para ele que hoje ela faria a sua performance. O encanto durou, por uma hora e vinte minutos…olhares de dois animais exóticos que se observam sem saber se são presas ou predadores.
Quando Flor saiu pela porta do teatro, Caio a esperava já há quase meia hora.
— Boa noite, desculpe a intromissão. Queria parabenizar pessoalmente sua entrega nesta peça…
— Ah, obrigada. Fico feliz que tenha gostado…recomende para seus amigos!
— Eu gostaria de me atrever a perguntar se toparia tomar um drink comigo…meu carro está estacionado logo ali.
— Eu topo sim, depois você busca seu carro…conheço um lugar na esquina!
Pronto, estava novamente instaurada a dança animalesca. Flor queria conhecer quem era esse homem, vestido de maneira tão elegante que tremera-se de frio durante toda a peça porém sem tirar os olhos dela por nem um segundo.
Caio tentou contestar algo, mas como ela já foi andando na frente, seguiu sentindo-se despreparado sem as rédeas da situação.
Agora os planos eram dela.
Descendo a rua, dobraram na esquina e Flor já foi de longe, em alto e bom tom, berrando para o atendente de um bar pé sujo com mesas plásticas na rua. Caio ia parecer uma obra de arte contemporânea no meio de uma rua da alfândega…
— Chico! Rola mais uma mesa aqui pra nós?
— Sempre rola, sempre rola!
Respondeu o atendente secando o suor na blusa, cheio de sorrisos.
Ela pegou a mão de Caio e puxou para que esse andasse um pouco mais rápido, se sentando já foi logo fazendo o seu pedido…
— Desce duas de cachaça Chico? E você, o que vai querer?
Caio intimidou-se, esse definitivamente não era o cenário que ele havia imaginado para sua noite.
— Pode ser uma cerveja…a que estiver mais gelada.
Ele suando, tirou seu blazer e pendurou na cadeira plástica. Enquanto ela acendia seu cigarro, ofereceu e os dois começaram a fumar.
— Eu realmente fiquei muito intrigado com a história dessa peça…
— Percebi.
— Fiquei fascinado pela sua performance.
— Você sabe que tinha outros atores em cena, não sabe? O que achou da peça?
— Gostei muito…fiquei pensativo…você também sabe que havia outras pessoas na platéia além de mim né?
Flor foi pega como presa e divertiu-se.
— Você era o espectador mais envolvido do recinto.
As bebidas chegaram, os dois ficaram conversando por um tempo e os dois tinham em comum a mesma missão; a sedução. Mas cada um a seu jeito. Flor, em dado momento, voltando de uma ida ao banheiro pediu que Caio ficasse de pé. Ele não entendeu ao certo se aquilo era” hora de ir embora”, um “até mais, prazer”. E não era, ela juntou seu corpo com o dele e deu um beijo que durou cerca de alguns minutos.
— Não sei ao certo se nosso beijo combina. Algo qualquer de estranho têm aí.
E falou no seu ouvido…
— Mas quero saber mais o que combina ou não. Podemos ir para a sua casa?
Caio foi até o caixa pagar a conta, mesmo que ela insistisse para pagar sua parte…agora andava apressado, estava fora da zona de perigo. Estava? Não sabia? Aquela mulher parecia ser um pouco perigosa…mas ele queria assumir os riscos e descobrir “o que combinava”.
Pegaram o carro e o apartamento era próximo. Ficaram calados no elevador vazio, até o sétimo andar. Mas ao entrar em casa, ela acendeu seu cigarro e começou a olhar com calma cada detalhe daquele ambiente. Era uma casa um tanto quanto bagunçada e havia livros, muitos livros por toda parte. Ele ofereceu um vinho do qual Flor aceitou uma taça cheia. Caio passou a mão gentilmente pelas costas dela e entremeou seus dedos em seu cabelo, revelando uma tatuagem do simbolo do infinito na nuca.
— Como você gosta Flor?
— Gosto de tantos jeitos…tudo depende do que os olhos dos outros me dizem…
— E o que meus olhos dizem?
Ela virou-se de frente para ele e apoio a taça em um movel, tocando sua fase como uma especie de mapeamento facial.
— Devagar. De suspiro em suspiro, bem devagar. Desvendar, algo que você tem algo a desvendar.Tenho minhas suspeitas que vagarosamente iremos nos encaixar.
Caio se sentia sendo preso na teia de uma sensual aranha, e corria seus riscos de ser devorado ao final do processo. Flor tirou apenas os sapatos e se sentou. Ele, abraçando o convite para o inesperado, abriu uma pequena gaveta e de lá tirou uma meia calça rasgada.
— Eu olhava para você, despindo-se no palco e colocando roupas masculinas. E pensava em mim, me despindo e colocando minha meia calça, porém sempre sem platéia alguma.
— Se se sentir confortável Caio, serei sua platéia essa noite. Eu senti em você alguma áurea de misterio. Não estava enganada. Tome seu tempo, não tenho pressa de ir à lugar algum.
Ele sentia o tremor de uma primeira vez, ter seu fetiche revelado, realizado…depois de tanto tempo, depois de tanto segredo e vergonha.
— Vá devagar…
E ele foi, tirando as suas roupas, vestindo a meia calça rasgada…seu pau já ereto, foi até a cama onde Flor lhe esperava ainda completamente vestida. Deixou com que ela passasse a mão em suas pernas suavemente, sentindo o tecido da meia. Colocou a mão dele por dentro de sua calcinha, onde ele já pode sentir o seu tesão.
Como quem analisa uma célula com seu microscópio, ficaram os dois durante horas nesta dança, semi nus à explorar cada centímetro de pele. Caio sentiu seu gozo vir com uma força nunca antes sentida. Seu corpo desfaleceu. Percebeu depois que ela ainda não havia gozado, e com a voz rouca falou.
— O que quer que eu faça Flor?
— Absolutamente nada. Meu prazer hoje foi ver o seu prazer desabrochar.
E deitou em seu peito. Caio ficou sem reação. Sentia que deveria fazer algo, ao mesmo tempo que sabia que aquela não parecia ser uma mulher que media suas palavras e a levou à sério. Restou apenas poder acariciar aqueles cabelos lisos e pretos, agora emaranhados. Os cabelos da mulher-aranha.
Os primeiros raios de sol começaram a entrar pela janela. Flor anunciou que precisava partir naquele momento e ir para casa, ele lhe ofereceu uma carona incisiva…mas ela apenas dizia que gostava de andar de ônibus nas primeiras horas da manhã.
— Quando poderemos nos ver de novo?
— Uma noite como esta, nunca mais teremos de novo. Você está convidado à ir na peça sempre que quiser. Quem sabe até fixar o seu olhar em alguma outra atriz…
Disse sem tom de deboche, apenas fazendo uma brincadeira com um sorriso no canto da boca.
— Mas eu quero lhe conhecer melhor, vamos trocar nossos contatos ao menos? Sinto que algo pode surgir daqui…
— Me desculpe te decepcionar, Caio, você é uma pessoa especial. Acontece que na minha vida, não cabem mais pessoas especiais. Não acredito em grandes e sólidos amores. Prefiro que as coisas sejam belas enquanto durem, e apenas isso.
Flor saiu pela portaria e caminhou até o ponto de ônibus mais perto. Naquele ponto de sua vida, ela já havia se tornado uma pessoa descrente do amor romântico. Se via confortável com seus encontros fugazes, ainda que profundos…tudo era brevemente passageiro. Para si, este era o seu “normal”. Histórias de grandes amores recíprocos eram feitas apenas no universo ficcional. Caio voltou para assistir todas as apresentações de sua peça. Ao final, dando dois beijos, ela sempre se despedia. Flor nunca conheceria ninguém que lhe causasse a vontade de se entregar de corpo e alma. Ao menos era isso que pensava. Até que um dia se viu provada do contrário.